Na rua 57, região central de Goiânia, o terreno vazio com solo concretado destoa das muitas casas em reforma. Os moradores mais novos não sabem explicar por que não há construção naquele espaço, que abriga apenas uma estrutura metálica enferrujada e grafites no muro do fundo.
A única identificação do local aparece no mundo digital: ao localizar a rua 57, o Google Maps exibe a inscrição "Césio 137", marcando o ponto zero onde o elemento radioativo foi liberado no ambiente e iniciou uma cadeia de contaminação.
O mapa mostra o endereço de um antigo ferro-velho onde, em 13 de setembro de 1987, começou o maior acidente radioativo do Brasil. Naquele domingo, sob a sombra de uma mangueira, funcionários do ferro velho partiram, a marretadas, o cabeçote de um equipamento usado em radioterapia. A peça havia sido encontrada por dois catadores num prédio em ruínas do antigo Instituto Goiano de Radioterapia (IGR), estava abandonada ali desde meados de 1985.
Carro de mão utilizado para transportar o material radioativo |
À medida em que os pedaços da máquina eram vendidos para outros ferros-velhos, aumentava o número de pessoas que reclamam de náuseas, vômito e diarreia. Esses sintomas iniciais, causados pela exposição à radiação, foram tratados pelos médicos como intoxicação alimentar.
Cinco dias depois, a cápsula com césio-137 chegou ao ferro-velho de Devair Alves Ferreira. Fascinado pelo brilho intenso emitido pelo pó no escuro, ele e a esposa logo adoeceram. Quando recebia visita dos familiares, Devair distribuía pequenas amostras do material que acreditava ser muito valioso. E, assim, os focos de contaminação se espalharam.
Foi Maria Gabriela, esposa de Devair, que desconfiou do poder maligno daquele brilho. Em 28 de setembro, ela colocou a cápsula dentro de um saco de estopa, pegou o ônibus na companhia de um funcionário do ferro-velho e entregou a peça na Vigilância Sanitária. A essa altura, já corria em toda a cidade o boato de que muitos membros de uma mesma família tinham adoecido.
No dia seguinte, um físico que visitava a cidade desconfiou dos relatos e visitou os pacientes com um medidor de radiação. Foi só então que Goiânia descobriu que a cidade estava há 16 dias exposta ao césio-137.
Local onde está estocado todo lixo radioativo coletado durante o processo de descontaminação. |
Os responsáveis por abandonar a cápsula no prédio desativado do IGR foram denunciados pelo Ministério Público Federal em Goiás por homicídio e lesão corporal culposos em novembro de 1987. Os médicos Carlos de Figueiredo Bezerril, Criseide Castro Dourado, Orlando Alves Teixeira, Amaurillo Monteiro de Oliveira e o físico responsável, Flamarion Barbosa Goulart, foram condenados nos anos 1990. Eles cumpriram pena em regime semi-aberto, à exceção de Amaurillo. Após recorrer da sentença, obtiveram habeas corpus e prestaram um ano de serviços comunitários. Em 1998, a pena foi extinta por decreto presidencial.
Vida reclusa
Trinta anos após o episódio que contabilizou 6.500 pessoas com algum grau de irradiação, 249 casos com significativa contaminação e quatro mortes quase imediatas, a memória do acidente traz incômodo e desconforto em todas as esferas que tiveram algum envolvimento com o caso.
Muitos dos que sobreviveram àqueles dias de terror continuam em Goiânia. Poucos, no entanto, falam abertamente sobre o acidente. Há quem tenha se mudado para longe para não ser associado ao caso. Outros ainda brigam na Justiça em busca de reparação – é o caso dos trabalhadores que atuaram na descontaminação dos pontos por onde o pó se espalhou e na construção do depósito dos resíduos.
Sem saber inicialmente de que se tratava de fonte radioativa, policiais, bombeiros e funcionários do a Consórcio Rodoviário Intermunicipal (Crisa), escalados por seus chefes, isolaram as áreas, destruíram imóveis, árvores, animais de estimação, calçadas, asfalto. Eram os dias finais da Ditadura Militar, e a lei da mordaça ainda vigorava.
Luisa Odet Mota dos Santos, à esquerda, fez empréstimos para comprar remédios em decorrência do acidente |
O irmão deles, Odesson Alves Ferreira, 63 anos, carrega as marcas da radiolesão nas mãos. Quando fora visitar os parentes que já estavam doentes, sem saber, por causa do césio, o então motorista de ônibus tocou naquele pó. Após a infecção ele passou por uma série de tratamentos experimentais e fundou, em dezembro de 1987, a Associação das Vítimas do Césio 137.
"Todos nós temos dificuldade em conviver com essa história", fala sobre as vítimas. "Trinta anos depois, sentimos que governo não cumpriu com sua obrigação. É impossível conseguir os remédios que precisamos e a nossa pensão, que deveria ser de um salário mínimo (R$ 937) segundo a lei, está desatualizada (R$ 778)", diz Odesson, que teve cerca de 40 familiares contaminados.
O tratamento pós-acidente
Em 1988, foi criado um serviço de saúde especialmente para o atendimento às vítimas, a Fundação Leide das Neves. Em 2011, uma mudança na lei levou o órgão no Centro de Assistência aos Radioacidentados (CARA) a funcionar segundo as normas do Sistema Único de Saúde (SUS).
Os radioacidentados passam por uma bateria anual de exames. Sobre as queixas das vítimas, Aurelio de Melo Barbosa, da secretaria estadual de saúde, afirma que "eles recebem medicação que está na lista básica de medicamentos do SUS".
Essa lista não inclui diversos dos remédios receitados. Muitos pacientes dizem ter feito empréstimos em banco para comprar a medicação. É o caso de Luisa Odet Mota dos Santos e do marido. "Tudo o que vem com a idade, apareceu bem mais cedo na gente", fala sobre o custo das doenças.
A recomendação para que pacientes obtenham medicamentos de alto custo é recorrer à Defensoria Pública, diz André Luiz de Souza, diretor do CARA. Atualmente, 28 profissionais atuam no CARA, que diz atender cerca de 1.200 pessoas dentre vítimas diretas, filhos e netos de radioacidentados e trabalhadores que atuaram na descontaminação.
"Se um serviço criado especialmente para o atendimento às vítimas não cumpre sua função, então ele não tem mais razão para existir", critica Odesson.
Traumas não superados
Trinta anos após o acidente, o trauma das vítimas ainda é evidente. A psicóloga do CARA Suzana Helou conduziu uma pesquisa para entender o nível de superação do acidente com o césio-137. O resultado, ao qual a DW Brasil teve acesso, será publicado num livro.
Dos 92 pacientes vivos acompanhados pelo CARA desde 1988, 48 aceitaram participar. A maior parte (85%) ainda se considera vítima do acidente em Goiânia, devido à discriminação que sofreram ou acreditam ainda sofrer por parte da população. "As pessoas ainda têm medo da gente", respondeu um entrevistado. "Isso não passa nunca".
Mais da metade (54%) disse não ter nenhum projeto para o futuro. "Eles perderam casa, documentos, móveis, isso traz sentimentos de comprometimento de identidade", comenta Helou.
O impacto mais marcante, no entanto, foi nas pessoas que eram crianças e adolescentes à época. "Eles sofreram interrupções bruscas, sentiram abandono, amigos se afastaram, planos foram interrompidos", afirma a psicóloga. Muitos se envolveram com drogas ou se tornaram alcoólatras, nunca mais voltaram a estudar.
Vida pós contaminação radioativa
Luisa Odet Mota dos Santos e Kardec Sebastião dos Santos hoje ajudam a cuidar dos netos. Os quatro filhos do casal tiveram muita dificuldade para continuar os estudos. "Nenhuma escola queria aceitar nossos filhos", diz Luisa. Eles não gostam de falar sobre o assunto, e ainda têm medo da discriminação.
Os filhos de Odesson também não se envolvem no assunto. "Eu só fico pensando quando a gente não estiver mais aqui. Quem vai cuidar para que essa história não seja esquecida? As vidas que se perderam nunca podem ser esquecidas. Um acidente desse não pode ser esquecido para que ele nunca mais repita".
Fonte: http://www.dw.com/pt-br/notícias/s-7111
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